Daí a concluir que o órgão está sorrateiramente tentando fazer as vezes de polícia judiciária e conduzindo investigações penais – como alguns querem fazer crer – vai uma boa e considerável distância. Existem aqueles que desconhecem as obrigações dos Auditores-Fiscais de compilar informações a respeito dos ilícitos penais de que tomem conhecimento e de repassá-las ao Ministério Público. Mas há também os que querem uma Receita Federal amordaçada, impotente, incapaz de contribuir com outras instituições para o combate à sonegação, à corrupção e à lavagem de dinheiro.
Como em nenhum outro órgão da administração pública brasileira, transitam todos os dias pelos sistemas informatizados da Receita Federal milhares de dados de transações, registros e operações. Ao apurar sonegação e evasão tributária, Auditores frequentemente se veem diante de outros ilícitos de ordem criminal. Coletar os elementos disponíveis e encaminhá-los ao Ministério Público não é sinal de voluntarismo, mas uma obrigação funcional. Isso ocorre rotineiramente por meio da denominada Representação Fiscal para Fins Penais (RFFP), nos casos em que o Auditor-Fiscal identifica fatos que, em tese, configuram crimes contra a ordem tributária e outros delitos relacionados, como lavagem de dinheiro, corrupção, falsidade ideológica, contrabando e descaminho. Em 2017 foram elaboradas 2.877 representações, correspondendo a 25,42% dos procedimentos de fiscalização encerrados.
A RFFP é encaminhada ao Ministério Público após proferida decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente. Caberá ao MP, se entender cabível, promover a ação penal, observando, na hipótese de contribuintes com prerrogativa de foro, o encaminhamento às autoridades competentes.
Há uma gama de crimes intimamente relacionados às infrações tributárias e aduaneiras. O Brasil é signatário de convenções internacionais cujo intento é reforçar o compromisso dos países membros com a prevenção e combate aos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Neste contexto, GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional), OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e OMA (Organização Mundial das Aduanas) consideram que as autoridades tributárias e aduaneiras têm papel primordial na identificação de movimentação financeira para lavagem de dinheiro, principalmente em função de possuírem ampla gama de atribuições e de instrumentos operacionais em seus campos de atuação.
Não sem razão, a Receita Federal tem assento e participação ativa na ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro), a principal rede de articulação para a formulação de políticas públicas voltadas ao combate àqueles crimes. A ENCCLA estabeleceu como uma de suas metas a criação dos Laboratórios de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro - LAB-LD, modelo de soluções de análise tecnológica para grandes volumes de informações. Assim, em abril de 2014, foi instalado o LAB-LD da Receita Federal. Aplicando-se técnicas de mineração de dados – algoritmos computacionais de inteligência artificial, modelos estatísticos e análises de vínculos – são identificadas empresas de fachada, casos de interposição fraudulenta na importação de mercadorias e de evasão de divisas, além de beneficiárias finais de esquemas de fraudes contra a administração tributária e de lavagem de dinheiro.
Segundo consta no site da própria Receita Federal:
“No campo operacional, a relevância dada pela RFB à prevenção e combate à lavagem de dinheiro se reflete no desenvolvimento de investigações em cooperação técnica com outros órgãos (relações institucionais com o DPF, MPF e Poder Judiciário, por exemplo), com o objetivo de desarticular organizações criminosas que, por meio da lavagem de dinheiro, tentam dar aparência legal a recursos provenientes de diversas atividades ilícitas.
No curso destas investigações, em que cada instituição atua no âmbito de suas competências legais, integrantes da Receita Federal trabalham intensamente na análise de dados e documentos, buscando formar um conjunto probatório que é de fundamental importância no processo de persecução penal”.
A relevância atribuída pela Receita Federal à prevenção e combate à lavagem de dinheiro é traduzida em seu Regimento Interno (Portaria MF nº 430/2017), que estabelece a repressão ao citado crime como uma de suas finalidades (art. 1º, inciso XX). Neste dispositivo, a Receita Federal institucionaliza o emprego de sua ampla estrutura administrativa, operacional, base de dados e recursos tecnológicos (ativos precipuamente direcionados para o combate de ilícitos tributários e aduaneiros) para o combate à lavagem de dinheiro.
O recente Decreto 9.527/2018 criou a Força-Tarefa de Inteligência para o enfrentamento ao crime organizado (FTI-CO), composta por militares e civis, para atuar no combate ao crime organizado, coordenada pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). A Receita Federal integra a força-tarefa com objetivo de analisar dados e produzir relatórios de inteligência, para subsidiar as ações do governo no combate a organizações criminosas.
Diante de tão abundantes elementos, não pode haver dúvida alguma de que cabe à Receita Federal um papel fundamental no enfrentamento dos ilícitos tributários e aduaneiros, mas também no tocante a outros crimes relacionados que venham a ser identificados pelos Auditores-Fiscais.
Com os recentes vazamentos, o “ataque reputacional” – na expressão utilizada por Gilmar Mendes – não foi apenas direcionado ao ministro do Supremo. Já está claro que a reputação da Receita Federal é também alvo da investida, que pode estar vindo de suas próprias trincheiras. Não custa lembrar que setores minoritários da casa ainda não engoliram a nomeação de Marcos Cintra para comandar o órgão.
Listas de contribuintes que apresentam indícios de irregularidades fiscais são produzidas quase todos os dias nas unidades da Receita Federal. Tais ações na fase preliminar de pesquisa e seleção devem ser, obviamente, sigilosas. O contribuinte só toma conhecimento ao ser intimado do efetivo início da fiscalização. Com as pessoas politicamente expostas, no Brasil, não é diferente.
Portanto, ainda que expressando solidariedade ao ministro pela odiosa quebra de sigilo, é necessário reforçar que os Auditores atuam ordinariamente dentro da mais estrita legalidade. Não há arapongagem, Gestapo ou bisbilhotice. O que há é um órgão de Estado tentando apenas cumprir sua missão constitucional, em nome da sociedade, sem considerar uns mais iguais do que outros.
JORNALISMO DEN